Por Matheus José Maria
Sobre Luis Antonio Gabriela.
Ontem tive uma experiência no mínimo inusitada.
Conheci a Gabriela, que na verdade nasceu Luis Antonio. Sendo mais
sincero ainda, Gabriela está morta há 7 anos mais ou menos e ainda
assim, a conheci ontem.
A conheci
desde o momento em que nasceu e se tornou parte de uma família
imperfeita - como tantas que tem por ai - e começou a sentir as agruras
do preconceito quando começou a se descobrir gay.
Acompanhei sua
trajetória, desde quando era Luis Antonio, um menino com trejeitos
femininos até o momento em que resolveu se transformar em mulher.
Um
cartaz que ele(a) carregou em alguns momentos dizia: "Nasci em um corpo
errado" e isso me fez pensar em quantas pessoas não se sentem assim,
não só pela sua sexualidade que não condiz com sua condição física, mas
com aqueles que acham que o seu nariz é muito grande, suas orelhas são
de abano e tantas outras imperfeições que nos aprisionam durante toda a
vida em uma cela de mágoa e auto-punição psicológica.
Mas voltando a
Gabriela, foi estranho saber que ela viveu aqui em Santos, cidade onde
resido atualmente e mais, viveu em uma área que a população insiste em
ignorar. O centro de Santos, zona portuária e outras zonas periféricas
onde sua economia é alimentada pela venda de um pouco de amor a quem
puder pagar, onde a carne tem um preço diferente e é exposta não em
espetos e refrigeradores, mas na porta dos pequenos hotéis, pensões,
pousadas, cortiços...
Tão perto de mim e eu nunca ouvi sua história antes.
Mesmo morta a tanto tempo, Gabriela faz-se ouvir por todos que estavam
ali presentes, prova disso foram duas amigas que me acompanhavam.
Árabes, uma fala e entende português, a outra nada e ainda assim me
disseram respectivamente: "Foi a peça mais incrível que eu já vi. No
Brasil todas são assim?" e a outra (traduzido do inglês): " Eu não
entendi praticamente nada do que foi dito, mas foi a melhor peça de
teatro que eu já vi na minha vida".
Engraçado pensar que a voz de
Gabriela que soava como um portunhol caricato conseguiu ultrapassar
barreiras culturais e linguísticas. Na verdade é porque Gabriela (já não
era mais Luis Antonio há muito tempo) falou ao coração da plateia que
lotava o teatro para ouvir, ou melhor, viver sua história junto dela.
Confesso que doeu ver o fim dela, não só por estar ali acompanhando as
consequências de uma vida desregrada, mas que ainda assim foi vivida
intensamente, mas por ver um ser humano, transformado em uma massa
disforme de silicone industrial que havia escorrido pelo seu corpo e
agora a desfigurava. Por ver a morte cobrando seu preço e a condenando a
usar fraldas em decorrência de uma hepatite c e de uma encefalopatia
que tiraram o controle sobre as contingências do seu corpo, mas não
tiraram seu orgulho de ser quem era.
Punição? Eu não acredito em
Deus, mas ainda assim ela acreditava e em um momento o questiona a
respeito do que havia feito para merecer isso. Eu digo que nada, mas Ele
não diz nada.
Ao fim de sua vida uma frase aparece em um letreiro e
uma parte dela diz "Desculpe por não ter sabido lidar com isso" e
assim, há 300 espetáculos nos deparamos com a tristeza, culpa e dor do
"bolinho' que nasceu Nelson de Baskerville, irmão de Gabriela que nasceu
Luis Antonio.
Não sei dizer se existe qualquer tipo de
possibilidade de existência que não a nesse mundo, mas se houver, com
certeza Luis Antonio Gabriela o perdoou.
Afinal, em uma de suas falas mais marcantes - para mim pelo menos - ela diz: "Não entendo porque as pessoas regulam afeto.".
E realmente, é uma coisa que eu não entendo também, mas talvez agora,
após ter conhecido Gabriela que nasceu Luis Antonio aqui em Santos,
perto de mim e de outras tantas pessoas que ainda não tiveram a
oportunidade de conhecê-la eu possa ofertar amor e carinho aos outros,
já que entender não tem mais importância.
E espero que todos que ali estavam lotando o teatro do Sesc Santos e presenciaram essa história, possam pensar assim.
Se essa foi a Gabriela real eu não sei dizer, mas as vezes um pouco de
ficção nos ensina muito mais sobre a realidade em que vivemos.
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